Refeição Cultural
"A política de apartheid havia criado um ferida profunda e perene no meu país e no meu povo. Todos nós passaremos muitos anos, senão gerações, nos recuperando daquele ferimento profundo. Mas as décadas de opressão e brutalidade tiveram outro efeito, não intencional, que foi a produção dos Oliver Tambos, os Walter Sisulus, os Chefes Luthulis, os Yusuf Dadoos, os Bram Fischers, os Robert Sobukwes dos nossos tempos - homens de coragem, sabedoria e generosidade tão extraordinárias que iguais a eles poderão não existir novamente. Talvez seja necessária tal profundidade de repressão para criar tais estaturas de caráter. Meu país é rico em minerais e pedras preciosas que estão sob o seu solo, mas eu sempre soube que a sua maior riqueza é o seu povo, mais belo e verdadeiro que o mais puro dos diamantes." (p. 760)
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"Aprendi que a coragem não era a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. Eu mesmo senti medo mais vezes do que posso lembrar, mas eu o disfarcei sob uma máscara de ousadia. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas aquele que conquista aquele medo." (p. 761)
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"Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor da sua pele, ou de sua origem, ou de sua religião. As pessoas têm que aprender a odiar, e se elas podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar, pois o amor ocorre com mais naturalidade no coração humano do que o seu oposto." (p. 761)
Ganhei a autobiografia de Nelson Mandela em agosto de 2014, no dia dos pais. Eu recém começava uma nova jornada de lutas em minha vida de representação eleita da classe trabalhadora. Havia começado um mandato na área da saúde em uma entidade dos trabalhadores do Banco do Brasil. Essa jornada de lutas durou 4 anos, foi até maio de 2018.
Durante o mandato na área da saúde, cheguei a ler a autobiografia de Mandela até a Parte Três (175 páginas), pouca coisa, mas minha vida era quase toda de leituras de trabalho. O grosso volume chegou a viajar comigo para alguns estados brasileiros, eu o lia durante os voos. Ao voltar definitivamente para minha casa em Osasco, o livro ficou quietinho na estante, esperando a leitura e o conhecimento completo desta rica história de lutas de um povo e seus líderes.
A VIDA DO POVO É LUTAR AO LONGO DO TEMPO
O tempo é algo muito presente na vida e na sociedade humana, mas pouco percebido.
DÉCADAS DE LUTAS PARA AVANÇAR - A luta do povo negro sul-africano pelo fim do regime da minoria branca e as leis raciais do apartheid - luta através do Congresso Nacional Africano (CNA) e de outras instituições populares - durou 82 anos, nos conta Nelson Mandela. Ele assumiu a presidência da África do Sul em 1994, aos 76 anos de idade. Mandela ficou preso pelo regime racial dos africâneres, o apartheid, por 27 anos. A maioria da população, de negros e mestiços, mal conseguia sobreviver em seu próprio país sob aquele regime injusto e opressor.
DÉCADAS DE RETROCESSO APÓS O GOLPE - Estamos em 2021 no Brasil. Há 6 anos o Brasil foi impedido, boicotado, assaltado por uma minoria também (como na África do Sul dos brancos). Um grupo de canalhas da casa-grande organizou um golpe para tirar de forma ilegítima a presidenta do país, golpe para destruir as cadeias produtivas do país, para roubar o pré-sal, para interromper os avanços que o povo conquistava, para dilapidar o patrimônio público e retroceder em todas as áreas da cidadania. Foi um golpe reacionário de uma minoria.
Em 2018, os golpistas ampliaram o processo de tomada do poder por assalto e corromperam o processo eleitoral. Uma operação chamada Lava Jato - um juiz suspeito e membros de órgãos públicos - interferiu nas eleições colocando o povo contra o maior partido de esquerda do país. Esses funcionários públicos suspeitos prenderam a maior liderança popular - o ex-presidente Lula -, que venceria as eleições e recolocaria o Brasil no caminho dos avanços populares e soberanos. E o pior, os golpistas e suas ferramentas de manipulação do processo eleitoral colocaram o pior tipo de gente que já ocupou o Congresso do país, uma alcateia eleita na onda do lavajatismo, e a consequência mais grave de tudo isso foi abrirem espaço para chegar à presidência um sujeito inominável, um ser desprezível, do mal, e agora acusado de diversas ilegalidades e suspeições de crimes, com mais de uma centena de pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara.
6 ANOS, em 6 anos o povo brasileiro vivenciou um retrocesso de décadas de avanços em todas as áreas da sociedade e da cidadania. Com o presidente traidor, o do golpe, e com o inominável alçado ao poder com a prisão do candidato Lula, o Brasil foi desmontado em todos os sentidos. 6 anos de destruição. E uma das consequências foi a morte de meio milhão de pessoas por um vírus para o qual há vacinas há quase um ano e a população segue morrendo porque o sujeito na presidência optou por contaminar a população com o vírus mortal. 6 anos...
Não sei, mas talvez tenhamos um processo longo de reconstrução do Brasil e de libertação do povo - a classe trabalhadora brasileira -, não sei se décadas, acho que sim, mas temos pela frente "uma longa caminhada até a liberdade" parafraseando Mandela.
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A AUTOBIOGRAFIA
Voltando à autobiografia de Nelson Mandela, peguei o livro na estante neste ano de 2021 e comecei a ler de novo. São 765 páginas. A história de Mandela e do CNA se confunde com a história do povo sul-africano.
O livro é dividido em algumas partes: 1."Uma infância no interior", 2."Johannesburgo", 3."O nascimento de um guerreiro pela liberdade", 4."A luta é a minha vida", 5."Traição", 6."O pimpinela negro", 7."Rivonia", 8."Ilha de Robben: os anos negros", 9."Ilha de Robben: o início da esperança", 10."Conversando com o inimigo" e 11."Liberdade".
Ao ler a história de Mandela, me lembrei um pouco do livro sobre Lula, organizado por Denise Paraná. Não são estratégias de produção textual parecidas, mas ambos os livros abordam a vida dos biografados em épocas e fases da vida. Através da história deles, vemos a história do país e do povo naquele período. As biografias acabam antes do período no qual os protagonistas exerceriam mandatos presidenciais.
Sofri demais na leitura do período dos 27 anos de prisão de Nelson Mandela e de seus companheiros de luta. Esses caras são gigantes!
Fiquei descabriado na fase seguinte à libertação dos líderes do CNA. Mandela mal pisou fora da prisão e as tentativas de negociação para se conseguir o fim do apartheid e do regime racial dos brancos africâneres, e os nacionalistas atuaram para dividir os negros e financiaram um grupo rival do CNA para uma guerra tribal com banhos de sangue, chacinas de centenas de pessoas durante todo o processo de negociação entre 1991 e 1994. Haja persistência de Mandela e seus companheiros para não retornarem à luta armada.
Enfim, conheci muito a respeito do processo de luta pela liberdade do povo negro sul-africano. Em vários momentos daquela história, vi semelhanças com o que já vivemos e podemos ter pela frente no Brasil atual.
FUTURO: SERÁ POSSÍVEL RECONSTRUIR O BRASIL SEM CONCILIAÇÃO?
"Foi durante aqueles longos e solitários anos que a minha fome pela liberdade do meu povo tornou-se uma fome pela liberdade de todos os povos, brancos e negros. Eu sabia tão bem quanto sabia qualquer coisa que o opressor tem que ser libertado tão certamente quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, ele está preso por detrás das grades do preconceito e da pobreza de outra pessoa, tão certamente quanto não estou livre quando a minha liberdade é tirada de mim. O oprimido e o opressor igualmente têm sua humanidade roubada." (p. 763)
Estamos presos ao ódio que envenenou a todos nós. Os organizadores do golpe de 2016 nos ensinaram a odiar.
Me parece que não conseguiremos avançar para um futuro brasileiro sem aprendermos a perdoar e amar.
Se quisermos recomeçar, teremos que superar o bolsonarismo, para além do clã desgraçado que está no poder por causa das fraudes diversas que alteraram o processo eleitoral de 2018.
Além de superar e eleger novos representantes para os executivos e os parlamentos, tanto o federal como os estaduais, teremos que superar o ódio que não nos permite sequer amainar a raiva que sentimos dessa gente que descobrimos serem más, repulsivas, hipócritas e preconceituosas a respeito de tudo. Teremos...
Nessa hora é que veremos o quanto um Mandela, um Lula, são as pessoas mais adequadas para nos ajudar no difícil processo de reconciliação, porque esses caras são diferentes, eles conseguem superar os bloqueios que o ódio nos põe em relação aos que temos raiva, rancor, mágoa etc.
É isso! Mais um livro lido, mais conhecimento adquirido.
William
Bibliografia:
MANDELA, Nelson. Longa caminhada até a liberdade. Tradução de Paulo Roberto Maciel Santos. Curitiba: Nossa Cultura, 2012.