Desenho: Aldemir Martins |
MINHAS LEITURAS
INTRODUÇÃO
Este livro é uma das obras mais marcantes que já li. Neste ano, fiz minha quarta leitura. A primeira vez que o li foi no ano 2000. Eu já tinha mais de trinta anos de idade e as mazelas do Nordeste eram quase as mesmas das décadas e séculos anteriores. Nada, nem ninguém, dava jeito naquele mundo. Na verdade, nenhum político ou política havia tido um foco sério naquele mundo.
Os poucos compromissados com a causa do povo do Nordeste, como Celso Furtado, não lograram êxito devido aos vícios da política, tanto local quanto nacional.
Uma das coisas mais marcantes para mim, ao ler a obra hoje, é em relação àquele Brasil descrito por Graciliano Ramos quando comparado com o Brasil atual, após os dois mandatos do presidente Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores. A diferença é fantástica!
Hoje, o Nordeste é pujança e a esperança é real e já é presente – é a região com o maior crescimento do PIB no País. A esperança é real e extrapola aquela que o povo simples brasileiro já carrega em seu DNA.
O livro serve de denúncia e de aviso. Vale a pena investir na política focada na solução dos problemas do povo de um país. Vale a pena. O Brasil provou isso no século XXI.
Qualquer região do mundo habitada pelos humanos tem possibilidades promissoras quando a política é focada na busca de soluções para melhorar a vida daquele povo e daquela comunidade. A inteligência humana, quando canalizada para o bem comum, é ilimitada.
VIDAS SECAS
A primeira coisa admirável é a linguagem ímpar de Graciliano. A obra é uma ficção em prosa, mas poderia ser construída em versos. O ritmo do autor é muito característico. Seco e direto, porém sensibilizador.
Vejam como poderíamos ler poesia em Vidas Secas. Coloco em verso o início da obra.
MUDANÇA
Na planície avermelhada
os juazeiros alargavam duas manchas verdes.
Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro,
estavam cansados e famintos.
Ordinariamente
andavam pouco,
mas como haviam repousado bastante
na areia do rio seco,
a viagem progredira bem três léguas.
Fazia hora que procuravam uma sombra.
A folhagem do juazeiro apareceu longe,
através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá,
devagar,
sinhá Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto
e o baú de folha na cabeça.
Fabiano sombrio,
cambaio,
o aió a tiracolo,
a cuia pendurada numa correia
presa ao cinturão,
a espingarda de pederneira no ombro.
O menino mais velho
e a cachorra Baleia
iam atrás.
O PAPAGAIO: ESPELHO DA LINGUAGEM DA FAMÍLIA
“Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.”
O papagaio acabou aprendendo a repetir o som de quem “falava” pela família: a cachorra Baleia.
ERAM COMO COISAS, MAS QUERIAM VIVER
“Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver (...) Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás...”
FABIANO: HOMEM OU ANIMAL?
“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.”
“Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.”
NA PRISÃO INJUSTA, LEMBROU-SE DA FAMÍLIA
“Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinhá Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinhá Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.”
TRAÇOS MARCANTES NA OBRA
Algumas características de Vidas Secas são bem conhecidas do público leitor.
- a não linguagem dos humanos;
- as características antropomórficas da cachorra Baleia, o ente da família mais “humano” e “inteligente”;
- as personagens humanas da família de retirantes são caracterizadas o tempo inteiro como animais. Os meninos não têm nome, não usam roupas. A família mais grunhe do que fala. Os meninos têm que aprender com Baleia várias coisas.
- o capítulo sobre Baleia nasceu como um conto e depois foi incluído no livro. O livro foi feito ao redor de Baleia. Não quero comentar sobre os acontecimentos finais em relação aos personagens. Prefiro que leiam a obra e descubram.
- os ciclos viciosos que se repetem desesperançosamente: a violência da “lei” contra os humildes; a sabida retirada e fuga da seca mais cedo ou mais tarde; a tendência das proles dos sertanejos serem rudes e não verem um destino melhor do que o de seus pais.
MINHA IMPRESSÃO DAS LEITURAS ATÉ 2002
Escrevi no livro o que havia sentido nas três leituras que eu fizera até a eleição para presidente do Brasil do metalúrgico Lula da Silva, filho de retirantes nordestinos como a família de Fabiano e Sinhá Vitória.
“Que situação infeliz! Isto acontecia em 1938. Isto acontece em 2002. São tantos homens, mulheres e crianças que sofrem com a seca no Nordeste.
2002: são tantos homens, mulheres e crianças que sofrem fome nas favelas de nosso País. Casas de madeira e latão. Casas de papelão. Crianças cheirando cola e crack nas praças. Homens defecando nas ruas. Andem nas metrópoles e vejam isto. 1938/2002 – sertão nordestino... São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte...
E as produções mundiais a cada dia batem novos recordes. E a fome a cada dia bate novo recorde.
Sempre assim. E os fabianos não atinam que têm direitos. Os homens brancos ficam nervosos e ameaçam só de ouvir grunhidos “hum, hum” dos fabianos reclamando.
O coração está apertado e mofino!”
CONCLUSÃO
Minha reflexão após tudo isso está no início, em minha introdução:
“Qualquer região do mundo habitada pelos humanos tem possibilidades promissoras quando a política é focada na busca de soluções para melhorar a vida daquele povo e daquela comunidade. A inteligência humana, quando canalizada para o bem comum, é ilimitada.”
Não era sonho aquilo que sempre buscou nosso mestre e sábio Celso Furtado. Ele faleceu ainda no início das transformações por que passaria o Nordeste brasileiro neste século XXI sob a batuta do metalúrgico retirante Lula da Silva.
Falta muito ainda, tanto para o nordeste quanto para os milhões de fabianos e família. Mas há esperanças quando há foco na política de desenvolvimento com distribuição de renda e riquezas.
Sigamos buscando o fim das vidas secas. Vimos que é possível.
William Mendes
Bibliografia:
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80ª edição. Editora Record. 2000.
Arrastaram-se para lá,
devagar,
sinhá Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto
e o baú de folha na cabeça.
Fabiano sombrio,
cambaio,
o aió a tiracolo,
a cuia pendurada numa correia
presa ao cinturão,
a espingarda de pederneira no ombro.
O menino mais velho
e a cachorra Baleia
iam atrás.
O PAPAGAIO: ESPELHO DA LINGUAGEM DA FAMÍLIA
“Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.”
O papagaio acabou aprendendo a repetir o som de quem “falava” pela família: a cachorra Baleia.
ERAM COMO COISAS, MAS QUERIAM VIVER
“Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver (...) Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás...”
FABIANO: HOMEM OU ANIMAL?
“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.”
“Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.”
NA PRISÃO INJUSTA, LEMBROU-SE DA FAMÍLIA
“Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinhá Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinhá Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.”
Desenho de Aldemir Martins |
TRAÇOS MARCANTES NA OBRA
Algumas características de Vidas Secas são bem conhecidas do público leitor.
- a não linguagem dos humanos;
- as características antropomórficas da cachorra Baleia, o ente da família mais “humano” e “inteligente”;
- as personagens humanas da família de retirantes são caracterizadas o tempo inteiro como animais. Os meninos não têm nome, não usam roupas. A família mais grunhe do que fala. Os meninos têm que aprender com Baleia várias coisas.
- o capítulo sobre Baleia nasceu como um conto e depois foi incluído no livro. O livro foi feito ao redor de Baleia. Não quero comentar sobre os acontecimentos finais em relação aos personagens. Prefiro que leiam a obra e descubram.
- os ciclos viciosos que se repetem desesperançosamente: a violência da “lei” contra os humildes; a sabida retirada e fuga da seca mais cedo ou mais tarde; a tendência das proles dos sertanejos serem rudes e não verem um destino melhor do que o de seus pais.
MINHA IMPRESSÃO DAS LEITURAS ATÉ 2002
Escrevi no livro o que havia sentido nas três leituras que eu fizera até a eleição para presidente do Brasil do metalúrgico Lula da Silva, filho de retirantes nordestinos como a família de Fabiano e Sinhá Vitória.
“Que situação infeliz! Isto acontecia em 1938. Isto acontece em 2002. São tantos homens, mulheres e crianças que sofrem com a seca no Nordeste.
2002: são tantos homens, mulheres e crianças que sofrem fome nas favelas de nosso País. Casas de madeira e latão. Casas de papelão. Crianças cheirando cola e crack nas praças. Homens defecando nas ruas. Andem nas metrópoles e vejam isto. 1938/2002 – sertão nordestino... São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte...
E as produções mundiais a cada dia batem novos recordes. E a fome a cada dia bate novo recorde.
Sempre assim. E os fabianos não atinam que têm direitos. Os homens brancos ficam nervosos e ameaçam só de ouvir grunhidos “hum, hum” dos fabianos reclamando.
O coração está apertado e mofino!”
Capa da primeira edição de Vidas Secas. |
CONCLUSÃO
Minha reflexão após tudo isso está no início, em minha introdução:
“Qualquer região do mundo habitada pelos humanos tem possibilidades promissoras quando a política é focada na busca de soluções para melhorar a vida daquele povo e daquela comunidade. A inteligência humana, quando canalizada para o bem comum, é ilimitada.”
Não era sonho aquilo que sempre buscou nosso mestre e sábio Celso Furtado. Ele faleceu ainda no início das transformações por que passaria o Nordeste brasileiro neste século XXI sob a batuta do metalúrgico retirante Lula da Silva.
Falta muito ainda, tanto para o nordeste quanto para os milhões de fabianos e família. Mas há esperanças quando há foco na política de desenvolvimento com distribuição de renda e riquezas.
Sigamos buscando o fim das vidas secas. Vimos que é possível.
William Mendes
Bibliografia:
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80ª edição. Editora Record. 2000.
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