quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Capitães da Areia (1937) – Jorge Amado


Imagem do filme Capitães da Areia.

CAPITÃES DA AREIA – Jorge Amado

CLÁSSICO BRASILEIRO de 1937

“Companheiros, vamos pra luta...”

Antes de iniciar esta obra prima de Jorge Amado, a única experiência com o autor foi a leitura de Mar Morto de 1936. Leitura que fiz na adolescência, quando vivia em Uberlândia. Aliás, recuperei o volume original de minha leitura, pois meu primo mo deu.
Estou chegando à metade da leitura e o livro já me emocionou várias vezes. Já me fez parar a leitura e ficar pensando em minha infância e adolescência lá em Minas Gerais. Também já me fez ficar pensando nos sentimentos que sempre tive.
Hoje, li um capítulo chamado Família e fiquei pensando a respeito. Eu torci para que o desfecho fosse outro. Fiquei confuso pensando em meu papel social e a torcida que tive e que não se realizou. Fui buscar pão para o café da manhã e fiquei me questionando enquanto caminhava.

A DIFÍCIL DECISÃO DE Sem-Pernas

- O ÓDIO QUE NOS MOVE...

“Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. Era como um hóspede. Era como um hóspede querido. E fumando o seu cigarro escondido (o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar), o Sem-Pernas pensa sem compreender. Não compreende nada do que se passa. Sua cara está franzida. Lembra os dias na cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca deixaram de persegui-lo. E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não sabe mesmo por quê, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que ele é um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá levar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no seu coração. Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver. E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor da mão do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para consigo.”
Vi em Sem-Pernas todo o ódio que senti na adolescência e que sempre me moveu...

- O AFETO QUE NOS MOVE...

“- Não precisa, dona Ester, aqui tá muito bom.
Ela se acercou dele e o beijou na face:
- Boa noite, meu filho.
Saiu, cerrando a porta. O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder sequer o boa-noite, a mão no rosto, no lugar em que dona Ester o beijara. Não pensava, não via nada. Só a suave carícia do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe. Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem-Pernas.”

EXCEÇÃO AO ÓDIO: SEUS PARES

“E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado (...).”

OUTRA EXCEÇÃO AO ÓDIO: DONA ESTER

“Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas abrira uma exceção para a gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo (...).”

QUEDEI CISMANDO

Fiquei incomodado com o desfecho do capítulo. Fiquei pensando no tema Igualdade de Oportunidades e outras questões que levantamos no movimento sindical a respeito de dar oportunidades iguais a todas as crianças e deixar que o restante venha com o tempo.
Me coloquei no lugar do Sem-Pernas e vi que tomaria outra decisão. Acho que por isso fiquei incomodado.
Talvez a minha posição tenha a ver com um de meus desejos mais antigos, desde o tempo em que torcia muito para o dia duro do trabalho braçal acabar para ir dormir e descansar física e mentalmente para um novo dia de labuta na adolescência inteira. Sonhava em encontrar Paz.
Um pouco de paz. A vida diária de grande parte das crianças, jovens e adultos pobres e miseráveis sempre foi uma guerra diária pela sobrevivência, por um lugar ao sol. Acho que no fundo, eu sonho com isso desde que me entendo por gente.
É isso, o livro de Jorge Amado já me levou várias vezes a pensamentos e lembranças profundas sobre a vida e sobre a minha vida.

Capa da edição que li.

A IGREJA E O PODER CONTRA OS “COMUNISTAS”

Neste trecho, vemos o padre amigo dos Capitães da Areia sendo fortemente repreendido por seus chefes da igreja.

“- Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e à igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais que leva. Violou as leis da igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá (agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia de resolução, uma doçura que não admitia réplicas), penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas ideias comunistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. O senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo? Lembre-se que a sua inteligência é muito pequena, o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus...

COMPANHEIROS

Este capítulo é muito legal.
Cito um trecho abaixo:
“Na madrugada que nasce, as estrelas começam a desaparecer do céu. Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra. Companheira... Também ela tinha sido uma companheira boa. A palavra brinca na sua boca, é a palavra mais bonita que ele já viu. Pedirá a Boa-Vida que faça um samba dela, um samba para um negro cantar à noite no mar. Vão como se fossem para uma festa. Armados com as mais diversas armas: navalhas, punhais, pedaços de pau. Vão para uma festa, porque a greve é a festa dos pobres, repete Pedro Bala para si mesmo.
No pé da ladeira da montanha se dividem em três grupos. João Grande chefia um, Barandão vai com outro, o maior vai com Pedro Bala. Vão para uma festa. A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças. Ainda assim é uma festa de homens. Mas é uma festa dos pobres, dos pobres como eles.”

Jorge Amado - Grande escritor brasileiro.

COMENTÁRIO FINAL

O livro me causou um impacto muito grande. Ao longo de sua leitura nesta semana, me peguei várias vezes pensando no passado, na minha infância e adolescência difícil – apesar de sempre ter tido uma família e pais maravilhosos -, nas crianças em situação de rua da atualidade.
A maior mudança das crianças dos Capitães da Areia e das crianças em situação de rua de hoje é a potência das drogas atuais, que destroem os usuários e os transformam em zumbis.
No século XX, as drogas que circulavam nos trapiches da vida eram a cola e a maconha. Outras mais potentes eram muito caras e circulavam nas camadas de maiores recursos.
As crianças e adolescentes em situação de rua que são fisgados pelo crack são destruídos em pouquíssimo tempo.
O livro é maravilhoso e me emocionei várias vezes ao longo da leitura. MUITO BOM. Irei buscar formas de ler mais obras deste imortal brasileiro Jorge Amado.
Fica o convite para a leitura deste clássico da literatura brasileira.

Bibliografia:
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Companhia de Bolso. 12ª reimpressão.


Post Scriptum (24/jan/17):

Ao reler a postagem para depois escrever a respeito de minha releitura do romance Mar Morto, chorei copiosamente. Acredito que foi devido ao contexto atual de meu País, agora sob estado de exceção, após golpe em 2016. A perspectiva de melhora da condição de vida dos "capitães da areia" espalhados Brasil afora, era perspectiva lenta, mas existia sob os governos do PT. Agora, aprofunda-se a volta de um país desgraçado, injusto, desigual para os 99% da população... muito triste tudo isso!

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