Quadro de Monet, em estudos de paisagens da região onde se passa o conto |
Paris estava bloqueada, faminta e arquejante. Tornavam-se muito raros os pardais nos telhados, e os esgotos despovoavam-se. Comia-se o que se encontrava.
Passeando tristemente, por uma clara manhã de janeiro, ao longo do bulevar exterior, com as mãos nos bolsos da calça e o ventre vazio, de repente o Sr. Morissot, relojoeiro de profissão e chineleiro nas horas vagas, parou ante um colega, em quem reconheceu um amigo. Era o Sr. Sauvage, um conhecimento travado à beira da água.
Todos os domingos, antes da guerra, Morissot partia ao amanhecer, levando em uma das mãos uma vara de bambu e às costas uma caixa de folha-de-flandres. Tomava o trem de Argenteuil, descia em Colombes, e depois caminhava a pé em direção à ilha Marante. Mal chegava a esse lugar de seus sonhos, punha-se a pescar; pescava até à noite.
Todos os domingos encontrava ali um homenzinho atarracado e jovial, o Sr. Sauvage, merceeiro estabelecido na Rua de Nossa Senhora de Loreto, outro pescador fanático. Não raro passavam os dois a metade do dia lado a lado, com a linha na mão e os pés oscilando acima da corrente; e tomaram-se de amizade.
Em certos dias não trocavam uma palavra. Algumas vezes conversavam; mas entendiam-se admiravelmente sem dizer nada, pois tinham gostos semelhantes e sensações idênticas.
Na primavera, de manhã, pelas dez horas, quando o Sol rejuvenescido fazia flutuar sobre o rio tranquilo essa pequena barrela que corre com a água, e derramava no dorso dos dois obstinados pescadores um bom calor de estação recente, por vezes Morissot dizia ao seu vizinho: -"Que doçura, hem?" - e o Sr. Sauvage respondia: - "Não conheço nada melhor." E isto lhes bastava para se compreenderem e se estimarem.
No outono, ao fim do dia, quando o céu, ensanguentado pelo poente, lançava na água imagens de nuvens escarlates, pupurejava o rio inteiro, inflamava o horizonte, tornava rubras como o fogo e dourava, entre os dois amigos, as árvores já tostadas, trementes de um frêmito de inverno, o Sr. Sauvage fitava Morissot, a sorrir, e exclamava: - "Que espetáculo!" E Morissot, maravilhado, respondia, sempre com os olhos no seu flutuador: - "Isto é melhor do que o bulevar, hem?"
Mal se reconheceram, apertaram-se as mãos com energia, muito comovidos de se reencontrarem em circunstâncias tão diversas. O Sr. Sauvage, dando um suspiro, murmurou:
- Acontece cada uma!
Morissot, muito triste, gemeu:
- E que tempo! Hoje é o primeiro dia bonito do ano.
Como efeito, o céu estava inteiramente azul e repleto de luz.
Puseram-se a caminhar um ao lado do outro, meditativos e tristes. Morissot prosseguiu:
- E a pesca, hem? Que boa lembrança!
O Sr. Sauvage perguntou:
- Quando voltaremos a ela?
Entraram num pequeno café e tomaram juntos um absinto; depois, voltaram a passear pelas calçadas.
Súbito, Morissot se deteve:
- Mais um verde, não?
O Sr. Sauvage concordou:
- Às suas ordens.
E entraram noutra casa de bebidas.
Ao saírem, achavam-se muito atordoados, transtornados como pessoas em jejum cujo ventre está cheio de álcool. O tempo era doce. Uma brisa acariciante fazia-lhes cócegas no rosto.
O Sr. Sauvage, a quem o ar tépido acabava de embebedar, parou:
- E se a gente fosse lá?
- Lá, onde?
- À pesca.
- Mas onde?
- Ora essa! Em nossa ilha. Os postos avançados franceses ficam perto de Colombes. Eu conheço o Coronel Dumoulin; hão de nos deixar passar facilmente.
Morissot estremeceu de desejo:
- Muito bem. De acordo.
E separaram-se para apanhar os seus instrumentos.
Uma hora depois, caminhavam juntos no meio da estrada. Alcançaram, afinal, a casa de campo ocupada pelo coronel. Este sorriu do pedido dos dois homens, e anuiu à fantasia deles. Prosseguiram seu caminho, munidos de passaporte.
Não tardou que transpusessem os postos avançados, atravessassem Colombes abandonada, e se vissem à margem dos pequenos vinhais que descem para o Sena. Eram cerca de onze horas.
Em frente, a aldeia de Argenteuil parecia morta. As eminências do Orgemont e do Sannois dominavam toda a região. A grande planície que vai até Nanterre estava deserta, completamente deserta, com suas cerejeiras nuas e suas terras cinzentas.
O Sr. Sauvage, apontando os cimos com o dedo, murmurou:
- Os prussianos estão lá no alto!
E uma inquietação paralisava os dois amigos em face daquele ermo.
Os prussianos! Nunca eles tinham avistado nenhum, mas sentiam-nos ali desde meses atrás, ao redor de Paris, arruinando a França, pilhando, chacinando, esfomeando, invisíveis e todo-poderosos. E uma espécie de supersticioso terror somava-se ao ódio que tinham a esse povo desconhecido e vitorioso.
- E se encontrássemos alguns deles, hem? - disse Morissot, balbuciante.
O Sr. Sauvage respondeu, deixando transparecer, a despeito das circunstâncias, esse gosto parisiense do gracejo:
- A gente lhes oferecia uma fritada.
Porém hesitavam em expor-se ao campo, intimidados pelo silêncio de todo o horizonte.
Por fim, o Sr. Sauvage decidiu-se:
- Vamos, a caminho! Mas com cautela.
E desceram a um vinhedo, curvados em dois, de rastos, valendo-se de moitas para se resguardarem, olhar inquieto, ouvido atento.
Faltava atravessar uma faixa de terra nua para ganharem a margem do rio. Puseram-se a correr; e, apenas atingiram a ribanceira, agacharam-se entre os caniços secos.
Morissot colou o rosto ao chão para escutar se andava gente pelos arredores. Não ouviu nada. Estavam sozinhos, inteiramente sozinhos.
Serenaram-se e começaram a pescar.
Diante deles, a abandonada ilha Marante ocultava-se à ribanceira oposta. A casinha do restaurante achava-se fechada, parecia desamparada desde anos.
O Sr. Sauvage pescou a primeira cavala. Morissot apanhou a segunda, e de momento a momento levantavam as linhas com um bichinho prateado a saltitar na extremidade do fio: verdadeira pesca milagrosa.
Introduziram delicadamente os peixes numa rede de malhas muito apertadas, mergulhada a seus pés. E uma alegria deliciosa os penetrava, essa alegria que nos domina ao reentrarmos no gozo de um prazer amado de que fomos privados por muito tempo.
O bom Sol destilava-lhes o seu calor entre as espáduas; já não ouviam nada, já não pensavam em nada; ignoravam o resto do mundo; pescavam.
De repente, porém, um ruído surdo, que parecia vir de sob a terra, fez tremer o solo. O canhão voltava a troar.
Morissot volveu a cabeça, e avistou acima da ribanceira, além, à esquerda, o grande perfil do Mont-Valérien, que trazia na fronte um penacho branco, um vapor do pó que acabava de cuspir.
E logo um segundo jacto de fumaça partiu do cimo da fortaleza; e alguns instantes depois ribombou nova detonação.
Seguiram-se outras, e a cada instante a montanha golfava a sua exalação de morte, soprava os seus vapores leitosos, que se erguiam com lentidão no céu calmo, formavam acima dela uma nuvem.
O Sr. Sauvage ergueu os ombros:
- Lá continuam eles.
Morissot, que via, com ânsia, submergir-se pouco a pouco a pluma do seu flutuador, foi subitamente assaltado de uma cólera de homem plácido contra aqueles endemoninhados que se batiam assim, e resmungou:
- É preciso ser estúpido para matar desse jeito!
- São piores que animais - observou o Sr. Sauvage.
E Morissot, que acabava de pegar uma mugem:
- E dizer-se que será sempre assim, enquanto houver governos!
O Sr. Sauvage o deteve:
- A República não teria declarado guerra...
Morissot interrompeu-o:
- Com os reis, temos a guerra fora de portas; com a República, temos a guerra dentro de casa.
E pegaram tranquilamente a discutir, ferindo os problemas políticos com uma razão sadia de homens mansos e limitados, acordes quanto a este ponto: nunca se teria liberdade. E o Mont-Valérien troava sem repouso, demolindo a balaços de artilharia casas francesas, triturando vidas, arrasando seres, aniquilando muitos sonhos, muitas esperadas alegrias, muitas felicidades prometidas, abrindo em corações de esposas, em corações de mães, além, noutras terras, sofrimentos que não mais teriam fim.
- É a vida - declarou o Sr. Sauvage.
- Diga antes que é a morte - replicou Morissot a rir.
Mas estremeceram de espanto, sentindo claramente que alguém acabava de caminhar, atrás deles; e volvendo os olhos, avistaram às suas costas, em pé, quatro homens, quatro homenzarrões armados e barbudos, vestidos de libré como lacaios, e com bonés chatos, mantendo-os em frente na extremidade dos seus fuzis.
As duas linhas escaparam-se-lhes das mãos e começaram a descer o rio.
Em alguns segundos foram eles agarrados, presos, arrebatados, metidos numa barca e transportados à ilha.
E atrás da casa que tinham julgado abandonada avistaram uns vinte soldados alemães.
Uma espécie de gigante peludo, que fumava, a cavalo numa cadeira, um grande cachimbo de porcelana, perguntou-lhes, em excelente francês:
- Então, senhores, fizeram boa pesca?
Aí, um soldado depôs aos pés do oficial a rede cheia de peixes, que tiveram o cuidado de trazer. O prussiano sorriu:
- Ah! ha! pelo que vejo, a coisa não ia mal. Mas o caso é outro. Escutem-me e não se perturbem. Para mim os senhores são dois espiões mandados para me espreitarem. Eu os prendo e fuzilo. Os senhores fingiam pescar para melhor dissimularem os seus propósitos. Caíram em minhas mãos, tanto pior para os senhores; é a guerra. Mas, como saíram pelos postos avançados, têm decerto uma palavra de ordem para entrar. Digam-me essa palavra de ordem, e eu lhes perdoarei.
Lívidos, um ao lado do outro, com as mãos agitadas por leve tremor nervoso, os dois amigos mantinham-se calados.
O oficial continuou:
- Ninguém o saberá nunca, os senhores voltarão calmamente. O segredo desaparecerá com os senhores. Se recusarem, morrerão, e imediatamente. Escolham.
Eles permaneceram imóveis, sem abrir a boca.
O prussiano, sempre calmo, prosseguiu, apontando para o rio:
- Imaginem que em cinco minutos estarão no fundo daquela água. Em cinco minutos! Os senhores têm parentes, não?
O Mont-Valérien não cessava de atroar.
Os dois pescadores continuavam em pé, e silenciosos. O alemão deu ordens na sua língua. A seguir, mudou de lugar a cadeira, para não ficar muito perto dos prisioneiros; e doze homens se vieram colocar a vinte passos, de fuzil ao pé.
O oficial prosseguiu:
- Dou-lhes um minuto, nem dois segundos mais.
Depois, ergueu-se de supetão, aproximou-se dos dois franceses, segurou Morissot pelo braço, arrastou-o para longe, disse-lhe em voz baixa:
- Depressa, a palavra de ordem? Seu companheiro não saberá de coisa alguma; eu darei a impressão de ter ficado compadecido.
Morissot não respondeu nada.
Então o prussiano arrebatou o Sr. Sauvage e propôs-lhe a mesma coisa.
O Sr. Sauvage não respondeu.
Ficaram de novo os dois lado a lado.
E o oficial entrou a dar voz de comando. Os soldados ergueram as armas.
Então o olhar de Morissot caiu, por acaso, sobre a rede cheia de cavalas, que ficara na grama, a alguns passos dele.
Um raio de sol fazia brilhar o monte de peixes, que ainda se agitavam. Sentiu invadi-lo um desfalecimento. Apesar dos seus esforços, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Balbuciou:
- Adeus, Sr. Sauvage.
O Sr. Sauvage respondeu:
- Adeus, Sr. Morissot.
Apertaram-se as mãos, abalados da cabeça aos pés por invencíveis tremores.
O oficial gritou:
- Fogo!
Os doze tiros foram como um só.
O Sr. Sauvage caiu em cheio sobre o nariz. Morissot, mais alto, oscilou, girou e desabou em cima do companheiro, com o rosto para o céu, enquanto de sua túnica, crivada no peito, se escapavam borbotões de sangue.
O alemão deu novas ordens.
Seus homens se dispersaram, e voltaram depois com cordas e pedras, que ataram aos pés dos dois mortos; em seguida, levaram-nos à ribanceira.
O Mont-Valérien não parava de ribombar, toucado, agora, de uma montanha de fumaça.
Dois soldados seguraram Morissot pela cabeça e pelas pernas; dois outros pegaram o Sr. Sauvage de modo idêntico. Os corpos, balançados com força por um instante, foram atirados ao longe, descreveram uma curva, depois mergulharam no rio, a prumo, arrastados pelas cordas.
A água esguichou, borbulhou, estremeceu, acalmou-se por fim, enquanto pequeninas vagas vinham até às margens.
Flutuava um pouco de sangue.
O oficial sempre sereno, disse a meia-voz:
- Agora é a vez dos peixes.
E tornou para casa.
De repente avistou na grama a rede com as cavalas. Apanhou-a, examinou-a, sorriu, gritou:
- Wilhelm!
Acorreu um soldado de avental branco. E o prussiano, atirando-lhe a pesca dos dois fuzilados, ordenou:
- Trate de me fritar quanto antes estes bichinhos, enquanto ainda estão vivos. Será uma delícia.
E voltou a fumar o seu cachimbo.
FIM.
COMENTÁRIO DE LEITURA DO CONTO
Fazendo uma análise do conto, percebemos a intenção do autor de nos passar algumas alegorias.
- Uma vida simples pode ser uma vida feliz. Não sabemos o dia de amanhã. As personagens nos dão uma lição de vida ao transmitir tanta alegria e prazer ao praticarem a sua pesca aos domingos, em silêncio, em meio à natureza.
- A guerra, com sua mortandade colossal, também serve de justificativa para que alguns homens, longe do contexto social, se animalizem, se revelem nos atos de frieza e crueldade, ao ponto de sentir prazer em matar.
- A diminuição na autoestima que um povo derrotado sente ao findar uma guerra. A visão que fica de que o adversário é um monstro, gigantesco e impossível de se derrotar.
Maupassant trabalhou neste conto com contrastes. Ele usa o mesmo espaço para situar dois contextos: tempos de paz versus tempos de guerra. Então temos:
Cidade faminta, arquejante X Bons tempos de pesca
Tristeza e desolação X Alegria e felicidade
O pesadelo da realidade da guerra X O lugar dos sonhos antes da guerra
Morte no rio, junto aos peixes X Vida, prazer, alegria no rio, junto aos peixes
Como na explicação dada em texto sobre crítica literária, de David Arrigucci Jr., abordando a temática de escolhas em como narrar, o autor Guy de Maupassant opta por narrar em cenas, com detalhes concretos, utilizando-se de um Sumário Narrativo do 3º ao 7º parágrafo para situar o leitor no tempo passado, que irá contrastar com a cena da guerra, quando o autor usa o tempo presente.
É um dos contos que conheço que mais me emocionam!
William Mendes
Passeando tristemente, por uma clara manhã de janeiro, ao longo do bulevar exterior, com as mãos nos bolsos da calça e o ventre vazio, de repente o Sr. Morissot, relojoeiro de profissão e chineleiro nas horas vagas, parou ante um colega, em quem reconheceu um amigo. Era o Sr. Sauvage, um conhecimento travado à beira da água.
Todos os domingos, antes da guerra, Morissot partia ao amanhecer, levando em uma das mãos uma vara de bambu e às costas uma caixa de folha-de-flandres. Tomava o trem de Argenteuil, descia em Colombes, e depois caminhava a pé em direção à ilha Marante. Mal chegava a esse lugar de seus sonhos, punha-se a pescar; pescava até à noite.
Todos os domingos encontrava ali um homenzinho atarracado e jovial, o Sr. Sauvage, merceeiro estabelecido na Rua de Nossa Senhora de Loreto, outro pescador fanático. Não raro passavam os dois a metade do dia lado a lado, com a linha na mão e os pés oscilando acima da corrente; e tomaram-se de amizade.
Em certos dias não trocavam uma palavra. Algumas vezes conversavam; mas entendiam-se admiravelmente sem dizer nada, pois tinham gostos semelhantes e sensações idênticas.
Na primavera, de manhã, pelas dez horas, quando o Sol rejuvenescido fazia flutuar sobre o rio tranquilo essa pequena barrela que corre com a água, e derramava no dorso dos dois obstinados pescadores um bom calor de estação recente, por vezes Morissot dizia ao seu vizinho: -"Que doçura, hem?" - e o Sr. Sauvage respondia: - "Não conheço nada melhor." E isto lhes bastava para se compreenderem e se estimarem.
No outono, ao fim do dia, quando o céu, ensanguentado pelo poente, lançava na água imagens de nuvens escarlates, pupurejava o rio inteiro, inflamava o horizonte, tornava rubras como o fogo e dourava, entre os dois amigos, as árvores já tostadas, trementes de um frêmito de inverno, o Sr. Sauvage fitava Morissot, a sorrir, e exclamava: - "Que espetáculo!" E Morissot, maravilhado, respondia, sempre com os olhos no seu flutuador: - "Isto é melhor do que o bulevar, hem?"
Mal se reconheceram, apertaram-se as mãos com energia, muito comovidos de se reencontrarem em circunstâncias tão diversas. O Sr. Sauvage, dando um suspiro, murmurou:
- Acontece cada uma!
Morissot, muito triste, gemeu:
- E que tempo! Hoje é o primeiro dia bonito do ano.
Como efeito, o céu estava inteiramente azul e repleto de luz.
Puseram-se a caminhar um ao lado do outro, meditativos e tristes. Morissot prosseguiu:
- E a pesca, hem? Que boa lembrança!
O Sr. Sauvage perguntou:
- Quando voltaremos a ela?
Entraram num pequeno café e tomaram juntos um absinto; depois, voltaram a passear pelas calçadas.
Súbito, Morissot se deteve:
- Mais um verde, não?
O Sr. Sauvage concordou:
- Às suas ordens.
E entraram noutra casa de bebidas.
Ao saírem, achavam-se muito atordoados, transtornados como pessoas em jejum cujo ventre está cheio de álcool. O tempo era doce. Uma brisa acariciante fazia-lhes cócegas no rosto.
O Sr. Sauvage, a quem o ar tépido acabava de embebedar, parou:
- E se a gente fosse lá?
- Lá, onde?
- À pesca.
- Mas onde?
- Ora essa! Em nossa ilha. Os postos avançados franceses ficam perto de Colombes. Eu conheço o Coronel Dumoulin; hão de nos deixar passar facilmente.
Morissot estremeceu de desejo:
- Muito bem. De acordo.
E separaram-se para apanhar os seus instrumentos.
Uma hora depois, caminhavam juntos no meio da estrada. Alcançaram, afinal, a casa de campo ocupada pelo coronel. Este sorriu do pedido dos dois homens, e anuiu à fantasia deles. Prosseguiram seu caminho, munidos de passaporte.
Não tardou que transpusessem os postos avançados, atravessassem Colombes abandonada, e se vissem à margem dos pequenos vinhais que descem para o Sena. Eram cerca de onze horas.
Em frente, a aldeia de Argenteuil parecia morta. As eminências do Orgemont e do Sannois dominavam toda a região. A grande planície que vai até Nanterre estava deserta, completamente deserta, com suas cerejeiras nuas e suas terras cinzentas.
O Sr. Sauvage, apontando os cimos com o dedo, murmurou:
- Os prussianos estão lá no alto!
E uma inquietação paralisava os dois amigos em face daquele ermo.
Os prussianos! Nunca eles tinham avistado nenhum, mas sentiam-nos ali desde meses atrás, ao redor de Paris, arruinando a França, pilhando, chacinando, esfomeando, invisíveis e todo-poderosos. E uma espécie de supersticioso terror somava-se ao ódio que tinham a esse povo desconhecido e vitorioso.
- E se encontrássemos alguns deles, hem? - disse Morissot, balbuciante.
O Sr. Sauvage respondeu, deixando transparecer, a despeito das circunstâncias, esse gosto parisiense do gracejo:
- A gente lhes oferecia uma fritada.
Porém hesitavam em expor-se ao campo, intimidados pelo silêncio de todo o horizonte.
Por fim, o Sr. Sauvage decidiu-se:
- Vamos, a caminho! Mas com cautela.
E desceram a um vinhedo, curvados em dois, de rastos, valendo-se de moitas para se resguardarem, olhar inquieto, ouvido atento.
Faltava atravessar uma faixa de terra nua para ganharem a margem do rio. Puseram-se a correr; e, apenas atingiram a ribanceira, agacharam-se entre os caniços secos.
Morissot colou o rosto ao chão para escutar se andava gente pelos arredores. Não ouviu nada. Estavam sozinhos, inteiramente sozinhos.
Serenaram-se e começaram a pescar.
Diante deles, a abandonada ilha Marante ocultava-se à ribanceira oposta. A casinha do restaurante achava-se fechada, parecia desamparada desde anos.
O Sr. Sauvage pescou a primeira cavala. Morissot apanhou a segunda, e de momento a momento levantavam as linhas com um bichinho prateado a saltitar na extremidade do fio: verdadeira pesca milagrosa.
Introduziram delicadamente os peixes numa rede de malhas muito apertadas, mergulhada a seus pés. E uma alegria deliciosa os penetrava, essa alegria que nos domina ao reentrarmos no gozo de um prazer amado de que fomos privados por muito tempo.
O bom Sol destilava-lhes o seu calor entre as espáduas; já não ouviam nada, já não pensavam em nada; ignoravam o resto do mundo; pescavam.
De repente, porém, um ruído surdo, que parecia vir de sob a terra, fez tremer o solo. O canhão voltava a troar.
Morissot volveu a cabeça, e avistou acima da ribanceira, além, à esquerda, o grande perfil do Mont-Valérien, que trazia na fronte um penacho branco, um vapor do pó que acabava de cuspir.
E logo um segundo jacto de fumaça partiu do cimo da fortaleza; e alguns instantes depois ribombou nova detonação.
Seguiram-se outras, e a cada instante a montanha golfava a sua exalação de morte, soprava os seus vapores leitosos, que se erguiam com lentidão no céu calmo, formavam acima dela uma nuvem.
O Sr. Sauvage ergueu os ombros:
- Lá continuam eles.
Morissot, que via, com ânsia, submergir-se pouco a pouco a pluma do seu flutuador, foi subitamente assaltado de uma cólera de homem plácido contra aqueles endemoninhados que se batiam assim, e resmungou:
- É preciso ser estúpido para matar desse jeito!
- São piores que animais - observou o Sr. Sauvage.
E Morissot, que acabava de pegar uma mugem:
- E dizer-se que será sempre assim, enquanto houver governos!
O Sr. Sauvage o deteve:
- A República não teria declarado guerra...
Morissot interrompeu-o:
- Com os reis, temos a guerra fora de portas; com a República, temos a guerra dentro de casa.
E pegaram tranquilamente a discutir, ferindo os problemas políticos com uma razão sadia de homens mansos e limitados, acordes quanto a este ponto: nunca se teria liberdade. E o Mont-Valérien troava sem repouso, demolindo a balaços de artilharia casas francesas, triturando vidas, arrasando seres, aniquilando muitos sonhos, muitas esperadas alegrias, muitas felicidades prometidas, abrindo em corações de esposas, em corações de mães, além, noutras terras, sofrimentos que não mais teriam fim.
- É a vida - declarou o Sr. Sauvage.
- Diga antes que é a morte - replicou Morissot a rir.
Mas estremeceram de espanto, sentindo claramente que alguém acabava de caminhar, atrás deles; e volvendo os olhos, avistaram às suas costas, em pé, quatro homens, quatro homenzarrões armados e barbudos, vestidos de libré como lacaios, e com bonés chatos, mantendo-os em frente na extremidade dos seus fuzis.
As duas linhas escaparam-se-lhes das mãos e começaram a descer o rio.
Em alguns segundos foram eles agarrados, presos, arrebatados, metidos numa barca e transportados à ilha.
E atrás da casa que tinham julgado abandonada avistaram uns vinte soldados alemães.
Uma espécie de gigante peludo, que fumava, a cavalo numa cadeira, um grande cachimbo de porcelana, perguntou-lhes, em excelente francês:
- Então, senhores, fizeram boa pesca?
Aí, um soldado depôs aos pés do oficial a rede cheia de peixes, que tiveram o cuidado de trazer. O prussiano sorriu:
- Ah! ha! pelo que vejo, a coisa não ia mal. Mas o caso é outro. Escutem-me e não se perturbem. Para mim os senhores são dois espiões mandados para me espreitarem. Eu os prendo e fuzilo. Os senhores fingiam pescar para melhor dissimularem os seus propósitos. Caíram em minhas mãos, tanto pior para os senhores; é a guerra. Mas, como saíram pelos postos avançados, têm decerto uma palavra de ordem para entrar. Digam-me essa palavra de ordem, e eu lhes perdoarei.
Lívidos, um ao lado do outro, com as mãos agitadas por leve tremor nervoso, os dois amigos mantinham-se calados.
O oficial continuou:
- Ninguém o saberá nunca, os senhores voltarão calmamente. O segredo desaparecerá com os senhores. Se recusarem, morrerão, e imediatamente. Escolham.
Eles permaneceram imóveis, sem abrir a boca.
O prussiano, sempre calmo, prosseguiu, apontando para o rio:
- Imaginem que em cinco minutos estarão no fundo daquela água. Em cinco minutos! Os senhores têm parentes, não?
O Mont-Valérien não cessava de atroar.
Os dois pescadores continuavam em pé, e silenciosos. O alemão deu ordens na sua língua. A seguir, mudou de lugar a cadeira, para não ficar muito perto dos prisioneiros; e doze homens se vieram colocar a vinte passos, de fuzil ao pé.
O oficial prosseguiu:
- Dou-lhes um minuto, nem dois segundos mais.
Depois, ergueu-se de supetão, aproximou-se dos dois franceses, segurou Morissot pelo braço, arrastou-o para longe, disse-lhe em voz baixa:
- Depressa, a palavra de ordem? Seu companheiro não saberá de coisa alguma; eu darei a impressão de ter ficado compadecido.
Morissot não respondeu nada.
Então o prussiano arrebatou o Sr. Sauvage e propôs-lhe a mesma coisa.
O Sr. Sauvage não respondeu.
Ficaram de novo os dois lado a lado.
E o oficial entrou a dar voz de comando. Os soldados ergueram as armas.
Então o olhar de Morissot caiu, por acaso, sobre a rede cheia de cavalas, que ficara na grama, a alguns passos dele.
Um raio de sol fazia brilhar o monte de peixes, que ainda se agitavam. Sentiu invadi-lo um desfalecimento. Apesar dos seus esforços, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Balbuciou:
- Adeus, Sr. Sauvage.
O Sr. Sauvage respondeu:
- Adeus, Sr. Morissot.
Apertaram-se as mãos, abalados da cabeça aos pés por invencíveis tremores.
O oficial gritou:
- Fogo!
Os doze tiros foram como um só.
O Sr. Sauvage caiu em cheio sobre o nariz. Morissot, mais alto, oscilou, girou e desabou em cima do companheiro, com o rosto para o céu, enquanto de sua túnica, crivada no peito, se escapavam borbotões de sangue.
O alemão deu novas ordens.
Seus homens se dispersaram, e voltaram depois com cordas e pedras, que ataram aos pés dos dois mortos; em seguida, levaram-nos à ribanceira.
O Mont-Valérien não parava de ribombar, toucado, agora, de uma montanha de fumaça.
Dois soldados seguraram Morissot pela cabeça e pelas pernas; dois outros pegaram o Sr. Sauvage de modo idêntico. Os corpos, balançados com força por um instante, foram atirados ao longe, descreveram uma curva, depois mergulharam no rio, a prumo, arrastados pelas cordas.
A água esguichou, borbulhou, estremeceu, acalmou-se por fim, enquanto pequeninas vagas vinham até às margens.
Flutuava um pouco de sangue.
O oficial sempre sereno, disse a meia-voz:
- Agora é a vez dos peixes.
E tornou para casa.
De repente avistou na grama a rede com as cavalas. Apanhou-a, examinou-a, sorriu, gritou:
- Wilhelm!
Acorreu um soldado de avental branco. E o prussiano, atirando-lhe a pesca dos dois fuzilados, ordenou:
- Trate de me fritar quanto antes estes bichinhos, enquanto ainda estão vivos. Será uma delícia.
E voltou a fumar o seu cachimbo.
FIM.
COMENTÁRIO DE LEITURA DO CONTO
Fazendo uma análise do conto, percebemos a intenção do autor de nos passar algumas alegorias.
- Uma vida simples pode ser uma vida feliz. Não sabemos o dia de amanhã. As personagens nos dão uma lição de vida ao transmitir tanta alegria e prazer ao praticarem a sua pesca aos domingos, em silêncio, em meio à natureza.
- A guerra, com sua mortandade colossal, também serve de justificativa para que alguns homens, longe do contexto social, se animalizem, se revelem nos atos de frieza e crueldade, ao ponto de sentir prazer em matar.
- A diminuição na autoestima que um povo derrotado sente ao findar uma guerra. A visão que fica de que o adversário é um monstro, gigantesco e impossível de se derrotar.
Maupassant trabalhou neste conto com contrastes. Ele usa o mesmo espaço para situar dois contextos: tempos de paz versus tempos de guerra. Então temos:
Cidade faminta, arquejante X Bons tempos de pesca
Tristeza e desolação X Alegria e felicidade
O pesadelo da realidade da guerra X O lugar dos sonhos antes da guerra
Morte no rio, junto aos peixes X Vida, prazer, alegria no rio, junto aos peixes
Como na explicação dada em texto sobre crítica literária, de David Arrigucci Jr., abordando a temática de escolhas em como narrar, o autor Guy de Maupassant opta por narrar em cenas, com detalhes concretos, utilizando-se de um Sumário Narrativo do 3º ao 7º parágrafo para situar o leitor no tempo passado, que irá contrastar com a cena da guerra, quando o autor usa o tempo presente.
É um dos contos que conheço que mais me emocionam!
William Mendes
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