quinta-feira, 11 de julho de 2024

47 de 100 dias



47. Estava sonhando com o passado. Não queria isso. Antes de dormir, estava lendo sobre Eça de Queirós, movimentos literários, estudando cultura. Me iludi, pensei que enganaria meu cérebro pondo ele a pensar o presente com informações novas. Mas não. Como acontece há anos, ao dormir, volto ao passado. Estava no sindicato, estava num evento num auditório do sindicato com gente do sindicato. Como não controlamos sonhos, no meio da gente do sindicato estavam pessoas da família que não vejo há séculos. Passado. Tudo é passado. A gente da família misturada com a gente do sindicato tem algum sentido no cenário onírico dos sonhos sem sentidos. Coloquei o despertador porque vamos a um velório na família daqui a pouco. Talvez encontre gente do passado que tenha frequentado meu sonho de há pouco. Passado. Tento enganar meu cérebro. Não necessariamente enganar. Tento dar estímulos novos ao cérebro, estudo todos os dias. Mesmo aos 55 anos. Tento mudar tendências biológicas por conhecer um pouco das coisas. Não estou obtendo resultados satisfatórios pelo visto. Por mais que estimule meu cérebro, meu centro biológico do viver, minha essência se sobressai e o passado se impõe. É só fechar os olhos e perder o "controle" racional que acho que tenho sobre eu mesmo e pronto: de volta ao passado. Como escapar do passado? Num mundo sem futuro, talvez não tenha como fugir ao passado. Ou talvez a questão seja outra, a prisão seja outra: num corpo sem futuro, talvez não haja outra coisa que não seja o passado. Talvez por isso não adiantem os estímulos para o cérebro trabalhar com o novo. Ter lido sobre o Eça, algo do passado, não me parece o motivo de voltar ao passado toda vez que durmo nos últimos anos. Acontece o mesmo quando os estímulos são informações novas, uma língua japonesa, um estudo sobre geografia, um filme etc. Talvez o meu cérebro esteja se perdendo no passado para sempre. Que merda se for isso. O velório que vamos é de uma pessoa da família que faleceu após um processo de morte do eu, do cérebro, antes do corpo. Alzheimer. Tenho medo de morrer meu eu antes do meu corpo. Torço para que meu corpo morra antes do meu eu. É hora de me levantar e me aprontar para a tarefa da despedida e do consolo fraterno às pessoas mais próximas em laços com a falecida, a Esther. Meu cérebro raciocina ainda. Quando pensei em escrever este texto, raciocinando, meu cérebro avaliou se queria umas dez ou dezenas de leituras deste registro, por raciocinar, sabendo que pelo título e pelos algoritmos defino a quantidade de acessos ao texto. Escolhi o título da tendência de dez acessos, não dezenas. É um texto para os íntimos...

William (seguirei estimulando meu cérebro. Não estou preso ao passado porque quero. É porque estou preso)

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